quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Sou "Retornada" - Refugiada

Antes do 25 de Abril eramos milhares e milhares de pessoas com as suas vidas livres, alegres, simples e estáveis, num país africano com clima de calor e praias, que propicia a LIBERDADE de SER e ESTAR. A simplicidade de uns calções e chinelos em casa, ou na rua, uma vida sem Tv onde se convivia bastante em familia e com amigos.

A minha família pertence àquele grupo de pessoas que veio para Portugal, no pós 25 de Abril, em 1975 apenas com uma mala de roupa, a fugir de uma guerra que matava pessoas por estarem à janela de casa, vitimas de uma bala perdida qualquer, de um dos três partidos que se alvejavam dentro da cidade de Luanda. 

O medo de morrer instalou-se nas nossas memórias de crianças com 12,13 anos, idade que eu e minha irmã tinhamos nessa data. De tal forma, que ainda hoje me custa ouvir foguetes, "morteiros".
Chamaram-nos retornados, mas de facto somos refugiados porque muitos eramos nascidos em Angola e não estavamos a retornar.

Deixámos lá a referência da "nossa terra", de pertença a um lugar onde se nasceu. Ficou a casa mobilada, o nosso quarto, os livros da Anita, os brinquedos, os carros dos pais, a praia, a piscina onde praticavamos natação, os amigos, todas as memórias e referências de uma vida com a consciência de 13 anos.

Eu e a minha irmã viemos uns meses antes dos meus pais, sózinhas, para casa de uma tia que vivia em Coimbra. Foi numa noite fria de Junho que aterrámos no aeroporto de Lisboa acompanhadas por uma hospedeira. Traziamos apenas um casaquinho de malha porque em Luanda mesmo no tempo das chuvas não era preciso outros agasalhos. Lembro-me que tremia de frio, de nervos pela incerteza da vida, pela  insegurança de uma vida sem os pais num país desconhecido, a responsabilidade de cuidar da minha irmã, com a consciência de que algo estava a mudar para sempre.

Como posso olhar para as noticias dos refugiados de qualquer parte do mundo, e não sentir nas minhas entranhas essa dor, esse medo do desconhecido, na necessidade premente de sobreviver a qualquer custo? Como podemos ignorar esse sofrimento?

Os primeiros meses em Coimbra no inicio de ano lectivo senti as primeiras reacções nada amistosas para com quem vem de fora. Os colegas do liceu eram racistas (eu sou molata/mestiça) e a discriminação foi gritante nessa altura. Chegavamos a casa da tia lavadas em lágrimas sem perceber porque nos tratavam assim. 

No final do primeiro período de aulas os meus pais tiveram que fugir de Luanda porque o meu pai estava num lista de homens que seriam mortos na semana seguinte. Estiveram escondidos no aeroporto de Luanda até conseguirem voo para Lisboa, naquilo que foi chamada a "ponte aérea". Fugiram como milhares,  apenas com uma mala onde a minha mãe trouxe os albuns de fotografias e algumas roupas.

Vivemos alguns meses numa pensão em dois quartos sem janelas, em Lisboa na praça da figueira.  Mas estamos gratos porque nos deram tecto e comida. Mas muitos de nós viveram em parques de campismo durante anos, até conseguirem ter trabalho.

Nesse ano lectivo mudámos de escola três vezes, mas passámos  o ano com boas notas, porque o meu pai dizia-nos: "Não liguem ao que vos dizem, provem o vosso valor, estudem e sejam melhores que eles". E foi isso que fiz, habituei-me a ser a melhor aluna da turma.

A par desse ensinamento o meu pai foi um exemplo de resiliência e positivismo face à maior de todas as adversidades, que é perder TUDO e Começar de novo. Sempre a rir e positivo ensinou-nos que na vida tudo se supera, que a seguir à desgraça vem a bonança. E que em Portugal continental as pessoas tinham outra cultura e costumes diferentes. 

Certo dia em Vila Franca de Xira eu e minha irmã com 14 anos, num dia de verão viemos para rua de calções e foi quase um escandalo. Olhavam para nós com ar reprovador e chegámos a casa todas aborrecidas sem perceber o porquê, quando o meu pai nos explicou que as mulheres cá não andavam de mini saia, nem calções, nem chinelos de dedo na rua, nem decotes, que muito poucas ousavam fumar na rua, que tudo "parecia mal" às mulheres deste país. Senti que as mulheres eram muito condicionadas e que isso influenciava a sua evolução enquanto seres. 
No entanto tive que me adaptar ao meio ambiente onde vivia e estudava, de forma a conseguir integrar-me socialmente.

Porém a natureza de mulher livre de pre-conceitos está nas minhas células, no meu inconsciente colectivo angolano, por isso sou tão defensora dos DIREITOS HUMANOS E LIBERDADE DE CADA SER. Isso reflecte-se em várias áreas desde a sexualidade feminina, a liberdade de escolha de género, a liberdade de cada Ser se Expressar de acordo com a sua Alma e suas ideias. Defendo a igualdade de direitos da comunidade LGBTI+. 
Sou contra qualquer tipo de discriminação.
Sou refugiada-"retornada" tenho alma angolana e personalidade adaptada portuguesa orgulho-me de quem Sou e estou Grata aos meus pais por isso.
Sou solidária e sofro com  os refugiados de todo o mundo. 
Estou indignada com a votação/decisão do Parlamento europeu nesta matéria, permitindo que se condene quem salva os refugiados. 
Lamento profundamente tanta ignorância e desumanidade.


Nota: Há quem diga que os "retornados"/refugiados de Africa provocaram um certo desenvolvimento e abertura nas mentalidades existentes na época.
Leia-se noticia do DN na época: https://images.app.goo.gl/XeopYJK8etY6Hic46

Em Amor
Com Alma Corpo e Mente
                                                                                                            Cristina Méga
                                                                                                Master Coach PNL/Terapeuta                                                                                                   cristinamariamega@gmail.com


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